Hoje em dia filmes com crianças malignas e carinha de anjo são bastante comuns. Mas na década de 50, obras como A tara maldita (que nasceu como livro, virou peça e depois ganhou adaptação para o cinema) devem ter provocado um burburinho tremendo. Tanto é que fica claro para quem assiste que o desfecho da obra foi alterado por algum tipo de censura - no caso, a pedido da Motion Picture Production Code. Mas, apesar de alguns tropeços, a história tem o mérito de ser original e bem conduzida. E o diretor Mervyn LeRoy teve a sorte de contar com um elenco tão bom: são eles que fazem o espectador aguentarem os exageradamente longos 129 minutos de projeção.
Rhoda (Patty McCormack) é uma menina perfeita: obediente, graciosa, boa aluna, educada. Tudo é tão acima da média que até sua dedicada mãe, Cristine (Nancy Kelly), passa a achar que há algo de errado. A desconfiança fica maior quando um acidente envolvendo um coleguinha de escola da garota termina em tragédia. Além de se mostrar inabalável ao conhecer a morte tão de perto, ela esconde alguns fatos sobre a vítima, que, coincidentemente a havia vencido num concurso de gramática. Mas algo terrível assim é duro demais para se encarar com facilidade. E esse sofrimento materno que norteia o filme torna tudo ainda mais denso.
Nancy Kelly, que interpretou o mesmo papel na Broadway, está incrível em cena e nos faz sofrer junto, mesmo que o tom geral das perfomances do elenco estejam num tom mais teatral. Patty McCormack também impressiona pela pouca idade e por ter em mãos uma personagem complexa e perversa como essa, capaz de mentir e manipular como poucos adultos. A tensão entre elas cresce quando surgem LeRoy (Henry Jones), o empregado desconfiado, Mrs. Daigle (Eileen Heckart), a mãe do menino morto, e Monica Breedlove (Evelyn Varden), a senhoria que faz as vezes de vizinha fofoqueira. Já o pai da criança, vivido por William Hopper, é praticamente dispensável à trama.
Os diálogos, um tanto verborrágicos, também seguem o estilo do teatro, mas as situações criadas vão criando tensão a partir de detalhes: uma medalha encontrada, um bibelô, um periquito prometido. Aliás, a bem da verdade, o fato de as motivações de Rhoda serem tão banais só contribui para tornar suas atitudes ainda mais horrendas. Mimada ao extremo, ela é capaz de qualquer coisa para ter suas vontades saciadas, mas todos ao seu redor não parecem perceber que o estrago já foi feito.
Pois aí é que vem o primeiro grande escorregão da trama, herdada do romance de William March: a explicação para a vilania da criança seria inata. Mais do que isso: genética. Se a justificativa da árvore genealógica da menina parece forçada, a ideia que ela quer comunicar ainda é mais polêmica, já que a menina foi criada com amor e em condições saudáveis. Então mimá-la acionou o tal dispositivo interno, herdado de seus antepassados, que a transformaria numa assassina? Sem entrar no mérito da questão (que, sim, me parece bastante discutível), o filme desperdiça a chance de levantar o debate ao já fornecer uma resposta. Não deixa de ser decepcionante.
E o segundo escorregão vem justamente no desfecho, mas é preciso lembrar que a culpa, em parte, é da censura (e se você ainda não viu o fime e quer continuar sem saber como o longa termina, melhor parar por aqui). O fim proposto por March é corajoso e, ao mesmo tempo, terno, na medida do possível: sem coragem de denunciar a filha, Cristine resolve lhe dar uma overdose de calmantes enquanto lhe conta uma história de ninar e, em seguida, se mata com um tiro. Proteção, culpa, desespero, tudo misturado na dose correta. E a surpresa ficaria com a menina sobrevivendo, o que deixa tudo ainda mais horripilante. Consigo imaginá-la crescida e cometendo novos crimes sem desmanchar suas tranças perfeitas.
O problema é que tudo isso está na tela, mas a trama continua. Numa apressada reviravolta, tudo se inverte: a mãe sobrevive e Rhoda é morta por um raio ao tentar encontrar sua sonhada medalha no lago. Reparem no conteúdo religioso contido nessas cenas extras. Num telefonema revelador, Cristine pede perdão ao marido por ter pecado (tentativa de suicídio). Já a menina, encarnação do mal, é exterminada da Terra pela fúria divina. A sensação de adulteração é clara, não só pela mudança, mas porque essa mensagem "cristã" não substituiu o desfecho anterior, apenas complementa - um problema que poderia facilmente ter sido resolvido na montagem. Maldita censura.
P.S.: Pelo visto, eu desrespeitei o aviso que aparece no fim da exibição: ele pedia para que os espectadores não revelassem o que acontece no final...
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