Um Ato de Esperança (The Children Act, 2017) é um filme de tribunal atípico: mais focado na vida pessoal da figura da juíza do que dos advogados ou partes envolvidas no caso, revela como é difícil para uma autoridade se manter imparcial em decisões judiciais e ainda equilibrar trabalho e vida pessoal. Esse é o grande mérito do filme de Richard Eyre: baseado no romance homônimo de Ian McEwan, que também assina o roteiro do longa, foca em um período conturbado da vida da juíza Fiona Maye (Emma Thompson) e nas consequências inesperadas de suas decisões.
A juíza de família Fiona Maye está em um estágio delicado da vida: em um ótimo momento de sua carreira, seu casamento está próximo do ponto de ruptura. O distanciamento necessário que Fiona criou para se manter lúcida e julgar questões delicadas em seu trabalho a impedem de se reconectar com o marido, Jack Maye (Stanley Tucci). Ainda há amor entre o casal, mas já não há intimidade. E após um difícil veredito em um caso polêmico de bebês siameses, com toda a pressão da opinião pública sobre ela, Jack manifesta o desejo de ter um caso extraconjugal - e é aqui onde começam suas dificuldades.
Fiona Maye (Thompson): bem-sucedida na carreira, mas com a vida pessoal bagunçada |
Ainda emocionalmente abalada, ela precisa julgar uma emergência: o hospital busca autorização para fazer uma transfusão de sangue em um jovem com leucemia, um procedimento padrão para a doença, mas que o paciente se recusa a receber por conta de sua fé. Ele e sua família são Testemunhas de Jeová, e sua crença não permite tal procedimento por acreditarem que Deus habita no sangue das pessoas. Como a saúde do rapaz está deteriorando rapidamente, é preciso agir rápido. Fiona, então ouve os depoimentos dos médicos responsáveis e dos pais do jovem, que reforçam que ele próprio estava convicto de sua decisão. É quando ela decide visitar o jovem no hospital antes de dar o veredito, algo totalmente inusitado e jamais visto antes, para chegar a uma conclusão.
Fiona e o marido, Jack (Tucci): o distanciamento entre eles não foi percebido por ela |
O jovem Adam Henry (Fionn Whitehead, de Dunkirk), apesar de muito doente, parece extremamente vivaz e convicto de sua fé. Mas a breve visita da juíza implanta no rapaz uma semente de esperança que ele não imaginava, e a partir desse encontro e da decisão dela em autorizar o procedimento à revelia da fé da família transformará a vida de todos os envolvidos. Fascinado pela figura da juíza e com um novo mundo de possibilidades à sua frente, o jovem torna-se obcecado com ela - uma paixão inocente e arrebatadora que vai balançar ainda mais os alicerces da mulher por trás da máscara profissional.
Adam (Whitehead): um novo mundo de possibilidades à sua frente |
O melhor desta trama é fazer com que o espectador perceba que não é nada fácil a vida de um juiz de família. Manter-se lúcido e não se deixar levar pela emoção em casos tão delicados sem perder a humanidade é uma tarefa quase hercúlea. Fiona é belamente retratada nesse sentido: ela sofre pelo iminente rompimento de seu casamento, mas luta para se manter eficiente no ofício que tanto ama. Nesse sentido, de revelar a humanidade dos personagens em detalhes sutis, o filme é um primor. O trio de atores principais, Thompson, Tucci e Whitehead, entrega excelentes performances que complementam essa composição.
Adam e Fiona: uma relação delicada e perigosa |
Mas, em uma segunda análise, há algo que incomoda na avaliação. A obsessão de Adam é claramente um traço de personalidade psicótica: ele se torna um stalker (perseguidor), e romantizar esse tipo de comportamento é um erro. Nesse sentido, perde força o argumento de "abalo emocional" que a personagem Fiona sofre, pois ela se torna uma vítima - mesmo que o perseguidor não tenha uma postura hostil. Outra coisa é insistir no estereótipo da mulher bem-sucedida profissionalmente e que não consegue manter a harmonia do lar. O clichê do marido que vai procurar algum prazer fora do casamento porque a mulher se dedica "demais" ao trabalho também está ali, mesmo que contextualizado de outra forma.
Um Ato de Esperança vale o ingresso principalmente pelas excelentes atuações e pelas reflexões profundas ao final do filme: definitivamente, é uma estória que leva a repensar muitas situações, como fé, justiça, equilíbrio, relações pessoais.
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