sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Crítica: Você Não Estava Aqui



Por Ana Beatriz Marin

Gig é uma gíria em inglês para trabalho ou biscate. Já o termo gig economy se refere a relações laborais baseadas em contratos temporários ou em atividades de freelancer, nas quais o profissional não trabalha para um empregador fixo. No Brasil, o termo é também usado para empregos criados por aplicativos. As mudanças provocadas pelo avanço da tecnologia - em especial a exploração e a precariedade laboral - são o fio condutor de Você Não Estava Aqui, de Ken Loach. Como de costume, o diretor britânico investe na crítica social e volta o seu olhar para a classe trabalhadora e suas dificuldades diárias, derivadas de péssimas condições de trabalho e abusos.

Logo na primeira cena do longa, escrito a quatro mãos com o roteirista Paul Laverty, conhecemos a sufocante situação de Ricky Turner (Kris Hitchen). Trata-se de um homem em busca de emprego, mas acima de tudo, de alguém desesperado para mudar de vida, ganhar mais dinheiro, resolver os problemas financeiros e voltar a viver com dignidade. Assim, Ricky aceita trabalhar como motorista de entregas mesmo após uma entrevista na qual o empregador deixa claríssimo que ele não terá nenhum direito garantido. Frases como "Você não trabalha para nós, mas conosco" são ditas de forma objetiva. E, apesar de ser claramente uma manipulação, Ricky segue em frente. Vende o carro da mulher para comprar uma van com a esperança de fazer 200 libras por dia, como um de seus colegas. No entanto, para reunir esse montante, é obrigado a trabalhar 14 horas por dia, de segunda a sábado. Além disso precisa fazer as entregas no tempo estipulado, já que atrasos não são tolerados. Do outro lado do aplicativo, o cliente acompanha em tempo real a localização do produto até chegar em sua casa.

Ricky Turner (Kris Hitchen) e a filha mais nova, Liza (Katie Proctor)

É fácil manipular pessoas em situação de extrema vulnerabilidade emocional. Ao aceitar trabalhar com a empresa, Ricky tem a ilusão de ser dono de seu negócio (não há contrato, os motoristas trabalham por conta própria). Mas, quando precisa se ausentar para resolver problemas pessoais, e diz "Eu achei que o negócio fosse meu", escuta: "E é. Mas a franquia é nossa". A desilusão vai tomando conta do personagem à medida que novas adversidades se apresentam.

A atmosfera de opressão, presente desde o início do filme, nunca desaparece. Ao contrário, vai crescendo enquanto a história avança. E existe também no ambiente familiar, o que torna o longa ainda mais denso. A mulher de Ricky, Abbie (Debbie Honeywood), trabalha como cuidadora de idosos, também sem contrato. Ao vender o carro, ela se vê obrigada a passar mais tempo na rua, pulando de ônibus em ônibus, devido aos diversos deslocamentos que precisa fazer ao longo do dia. Marido e mulher saem muito cedo de casa e voltam tarde. Cansados, muitas vezes já encontram a filha mais nova, Liza (Katie Proctor), dormindo. O mais velho, o adolescente Seb (Rhys Stone), é o que mais sente a ausência dos pais. Sua aparente rebeldia esconde a profunda dor emocional que sente, revelada nos minutos finais de trama, numa única frase.

O filme retrata como as condições precárias de trabalho afetam as relações familiares

Você Não Estava Aqui ressalta, em tempos de novas tecnologias, como o sonho de empreender e ser dono de seu próprio negócio e tempo pode ser uma armadilha. Reflete a realidade de milhares de pessoas em todo mundo, que trocaram a estabilidade de um emprego regular, com horário e salários fixos, férias e plano de saúde, pela instabilidade de um trabalho informal que, em muitas ocasiões, gera mais tristeza do que felicidade.

Sobreviver e seguir lutando em meio às adversidades é preciso. Alguns acreditam que isso não precisa ser feito a qualquer preço. Outros, não veem (ou não têm) saída.  A cena que fecha o filme que o diga.

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