quinta-feira, 12 de março de 2020

Crítica: Doce Entardecer em Toscana



Por Ana Beatriz Marin

Existe uma linha tênue, frágil e invisível que separa os imigrantes que vivem numa pequena cidade na Toscana da população local. Quando nenhum conflito emerge, a convivência é pacífica. É como se a tal linha sequer existisse. Mas quando algo (que tenha relação com eles) acontece, ela surge. E, por ser delicada, pode arrebentar a qualquer momento, gerando consequências inesperadas. Em Doce Entardecer em Toscana, que estreia nesta quinta-feira (12), essa relação forçosa é construída à base de medo, intolerância, estereótipos e preconceitos, pelo menos no que diz respeito à imigração atual, vinda principalmente de países africanos.

Logo na cena de abertura do longa, vemos a renomada escritora Maria Linde (Krystyna Janda) comprando peixe junto a pescadores italianos para o jantar que vai celebrar a recente conquista do Prêmio Nobel de Literatura. Maria é uma imigrante polonesa, que chegou à Toscana fugida da Segunda Guerra Mundial e está perfeitamente integrada à Itália e à comunidade onde vive há décadas com o marido, o italiano Antonio (Antonio Catania). Mas é à noite, quando o delegado (Vicent Riotta) aparece na porta de sua casa com flores nas mãos, que a linha tênue e frágil mostra-se pela primeira vez. E tal qual é. Ele afirma que é preciso tomar cuidado, pois houve uma fuga de imigrantes do centro de acolhida de Lampedusa e eles podem ser perigosos.

Adiante, os dois netos de Maria Linde fazem uma aposta. O menino se esconde, e a irmã precisa encontrá-lo. Quem vencer o jogo leva o dinheiro. Para desespero da família„ o garoto só reaparece muitas horas depois, à noite, trazido por Naazer (Lorenzo de Moor), um imigrante egípcio com quem Maria tem um caso extraconjugal, e que é dono de um restaurante próximo ao mar. Mesmo ficando claro que o rapaz nada tem a ver com o sumiço do menino, ele é conduzido à delegacia para prestar esclarecimento. Novamente, a tal linha tênue e frágil dá as caras, carregada de desconfiança. Muito pouco é dito, mas é suficiente para o espectador perceber a carga de preconceito e paranoia existente ali.

A escritora Maria Linde (Krystyna Janda) tem um caso com o jovem imigrante Naazer (Lorenzo de Moor)

É interessante notar como a tensão entre imigrantes e a população local vai crescendo ao longo da narrativa, a partir de situações isoladas e dos conflitos pessoais de Maria Linde. Ela tem cerca de 60 anos, é consagrada em sua profissão e considera que não precisa mais dar entrevistas para a imprensa, pois não tem mais nada a dizer. Apesar da fama, paga as contas com uma certa dificuldade, e vive um casamento rotineiro - não existem grandes conflitos na relação, mas uma monotonia, que faz com que ela peça ao marido para jogar fora as pantufas que usa dentro de casa. "Por favor, faça barulho!", pede ela numa carta.  O caso com Naazer a faz se sentir mais viva.

Profissionalmente, parece em busca de outro rumo, ou talvez de uma ruptura. E ela se dá, no momento em que um atentado terrorista arrasa com o centro de Roma. Durante um discurso em sua homenagem, em evento organizado pela prefeitura, ela classifica o ataque como uma "obra de arte", causando um enorme desconforto na plateia. O evento, e as consequências derivadas de suas palavras, farão a linha tênue e frágil  entre imigrantes e a população local se romper por completo e mostrar sua face mais cruel: o filho do delegado (que, vejam só, é marroquino) vai apanhar na escola, a ponto de ficar em coma no hospital, e o restaurante de Naazer será incendiado.

Maria tentará explicar a um jornalista do jornal francês Le Monde o que quis dizer ao comparar o ataque em Roma a uma obra de arte, mas não terá êxito, pois considera que simplesmente ninguém é capaz de compreender suas ideias. Mas talvez fosse interessante que o filme, dirigido por Jacek Borcuch, deixasse isso claro pelo menos para o espectador, que também fica sem compreender a real intenção por trás do gesto.

Ao abandonar a entrevista, Maria se encaminha para a praça central onde uma jaula vazia foi instalada (o objeto e as discussões acerca de sua intencionalidade surgem no início do filme, quando o artista plástico que criou a obra discorre sobre ela). E é justo a personagem que mais liberdade buscava, que acaba presa ali, num final aberto, que dá margem a inúmeras interpretações...

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