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Fé, orgulho e preconceito

Zé do Burro (Leonardo Villar) e sua esposa (Glória Meneses): quanto vale a sua fé?

Algumas palavras são difíceis de ser explicadas e mais ainda de serem compreendidas. Fé é uma delas. Difícil fazer alguém que não acredite em qualquer deus ou divindade entender o que move aquele que tem fé. A mão inversa também é igualmente difícil de se compreender: como algo tão simples quanto seguir com sua fé pode ser tão complicado ou até mesmo errado? É assim que pensa Zé do Burro (Leonardo Villar, magnífico!). Ele havia feito uma promessa a Santa Bárbara para salvar seu burro Nicolau, e sua intenção era agradecer a graça recebida. Seu burro havia se salvado, então nada mais justo que ele cumprir sua palavra: era só deixar sua cruz aos pés do altar-mor da igreja da santa. Volta pra casa, pro seu burro, pra sua vida normal.

Mas nada nessa vida é fácil, e Zé do Burro - mesmo acostumado com as agruras de viver no interior - não estava preparado para um dos maiores complicadores de vida que existem: a ignorância. O padre da igreja até considerou de boa fé o sacrifício do pobre homem, mas ao descobrir que a promessa fora feita num terreiro de candomblé tudo mudou de figura. Qualquer outra palavra dita pelo homem só o faziam crer que tudo aquilo era 'obra de satanás'. E Murphy tá aí pra nos lembrar que nenhuma desgraça chega sozinha, e que tudo sempre pode piorar. Os aproveitadores de plantão estavam por toda a parte: o cafetão boa pinta que se engraçava para a esposa cansada de tanto sofrimento, o repórter que precisava de uma boa manchete, o dono do bar que lucrava com o aumento da clientela que ia lá só para ver o homem que estava proibido de entrar na igreja. De uma hora pra outra, Zé do Burro passou de um humilde roceiro a um herege-'falso-profeta'-curandeiro-revolucionário-comunista-'corno-manso'. Tudo havia fugido ao seu controle. Mesmo quando lhe foi oferecida a oportunidade de trocar sua promessa, ele se manteve firme - apesar de toda humilhação, de todo sofrimento, de toda fome, dor e cansaço da viagem de 7 léguas até ali.

Cenas impactantes, questionamentos profundos: uma aula de cinema e reflexões para a vida toda

O filme inteiro é uma ácida crítica à intolerância religiosa, ao oportunismo da imprensa, à toda sorte de malandros que estão à espreita. Tudo o que o homem pretendia era seguir sua vida, realizar uma tarefa e pronto. Mas tudo o que aconteceu o levou a duvidar de todos, de tudo, de si próprio, da própria fé. A degradação do espírito de Zé do Burro é gradual, e percebemos todas essas nuances na interpretação comovente e espetacular de Leonardo Vilar. O texto e o argumento de Dias Gomes é fantástico e foi inacreditavelmente bem adaptado. O filme mostra basicamente um dia na vida na vida do casal (após o registro da promessa e da caminhada, eles chegam à porta da igreja de madrugada) e poderia ter sido muito chato. Ou pendido para qualquer lado, levantado qualquer bandeira - a fé cega do pagador de promessas, o orgulho da igreja decadente, a crítica à imprensa sensacionalista e vendida à política, a intolerância religiosa.

Zé do Burro finalmente entra na igreja e cumpre sua promessa

A fotografia em preto e branco dialoga com a cena (a igreja fica quase sempre na penumbra, deixando nas entrelinhas o arcadismo da instituição - e isso é só um exemplo), as tomadas de ângulos diferentes, as interpretações seguras e bem dirigidas (abro um único parêntese para Othon Bastos, que faz um jornalista um tanto teatral demais) são mérito absoluto do diretor Anselmo Duarte, que equilibrou com maestria todos esses assuntos espinhosos sem levantar nenhuma bandeira e sem deixar de falar nada. Acho que é por isso que o filme é tão reverenciado, aqui no país e fora: extremamente bem feito, equilibrado, com atuações marcantes e um argumento simples - os desdobramentos é que se complicam sozinhos. Assim como a vida.

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