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Fugir é para os fracos

William Hurt e Raul Julia: sem esses dois nos papéis principais, provavelmente o filme não teria o mesmo efeito - e seria um crime se isso acontecesse


O beijo da mulher aranha (Kiss of the spider woman, 1985) é um filme surpreendente. Na verdade, ele não é nada daquilo que parece. Eu achei que seria um martírio assisti-lo; não foi. Achei que seria estranho ver atores brasileiros falando inglês - até porque, como justificar as pessoas morando no Brasil e falando inglês? - mas não foi isso o que aconteceu. Achei que finalmente fosse ver Sônia Braga atuando, mas também não foi - é, porque ela achou que estava atuando. Uma história com um forte conteúdo político e um teor de crítica social altamente ácido, fala só de uma coisa: amor.


Amor a uma causa, amor a uma mulher, amor ao cinema (adoro a estética do filme dentro do filme), amor não-correspondido, amor cinematográfico, amor homossexual, amor de amigo, amor de mãe e de filho, amor próprio, amor ao próximo, amor à vida, amor que não escolhe hora nem lugar, nem motivos pra fugir. Tudo isso em 2h de filme que se passam quase em sua totalidade em um diálogo entre Luis Molina (William Hurt, excelente) e Valentín Arregui (Raul Julia, excepcional) - dois companheiros de cela. Ora, se dois sujeitos estão na cadeia, há de se supor que não do tipo que falariam de amor. De cara, percebe-se que um está mais conformado com a situação do que o outro. Enquanto Molina narra a história de um filme (que, no fundo, é filme de propaganda nazista; mas ele só valorizava o enredo romântico que havia no longa para disfarçar o discurso do fürer), Valentín está num canto, ouvindo a história - mas está longe de se deixar enganar por ele e mais longe ainda de estar acomodado. Como todo bicho selvagem acuado, está sempre alerta e pensando em como sair de seu cativeiro.

Cena do filme contado por Molina (Hurt): só eu achei o Herson Capri a cara do Lucius Malfoy?

A relação entre eles vai crescendo conforme a narrativa do filme se desenvolve. A desconfiança de Valentín vai diminuindo após as constantes provas de amizade de seu companheiro de cela, a intimidade crescendo ao mesmo tempo em que a história vai chegando ao clímax e ao final trágico. A arte imitando a vida, um agente duplo que se apaixona pelo alvo a que fora destinado a delatar, a morte trágica por causa desse amor. Nesse caso, ainda mais complicada que na fictícia estória contada por Molina. Ele, homossexual preso por se envolver com um menor, apaixona-se pelo guerrilheiro apaixonado pela causa e por uma burguesa, a real dona de seu coração - mesmo que ele tivesse arrumado uma namorada. E o cara era do tipo durão, que não demonstrava sentimentos, que iria acabar morrendo antes de delatar algum companheiro durante a tortura. Improvável era o mínimo, as esperanças de Molina eram praticamente nulas. Mas ao se ver coagido (sua liberdade condicional havia sido revogada indefinidamente, mas o diretor da cadeia a oferece se ele conseguir arrancar alguma informação de seu companheiro de cela), a proximidade entre os dois aumenta e esse é um caminho sem volta.


As atuações são um capítulo à parte. Hurt e Julia são absolutamente perfeitos na construção de seus papéis: Molina é de uma leveza e sutileza sem afetamentos, bastante usuais nas caracterizações de homossexuais nas telonas; e Julia é o cara durão que não é um brucutu, com um coração de ouro. Emocionante a cena em que Molina se declara a Valentín, e este entende os sofrimentos e a necessidade de carinho do companheiro, não se negando a uma noite com ele ao perceber que esta seria provavelmente a única vez que ele teria o afeto correspondido. Porque foi mais que pura gratidão por ele ter ajudado quando Valentín estava sendo envenenado. Os outros atores brasileiros também tem participação marcante, principalmente o saudoso José Lewgoy e Milton Gonçalves, como um típico policial mal assalariado que já está de saco cheio do trabalho, mas que é obrigado a continuar investigando porque o filho-da-p*** não quer abrir o bico. Sensacional. A decepção mesmo veio com Sônia Braga.

Sônia Braga: interpretação e cabelos horrosos, porém premiados

Gente! É sério que ela tava interpretando daquele jeito e todo mundo achou lindo? Ok, pode alegar aí que ela estava interpretando dentro de uma outra interpretação ao fazer a cantora francesa lá... Mas nem teatral ela tava! Expressões faciais exageradas e tensão no corpo, movimentos pra lá de robóticos... E na hora de atuar normalmente (como Marta, o verdadeiro amor de Valentín), ela foi simplesmente apática. E a tal mulher-aranha? Prefiro não comentar. E ela ainda ganhou um Globo de Ouro por essa atuação... Ou eu sou crítica demais, ou a atuação dela é tão incrível que eu não consigo compreender... Melhor voltar pro que o filme tem de melhor. Lindo o final, apesar de trágico - e quem não esperava isso? A forma como Molina morreu, tomando as rédeas da própria vida, por amor a Valentín... O lirismo da sofrida morte de Valentín, que enfim encontrou a paz nos braços de sua amada. Um filme emocionante, tocante, que fala de amor. Para românticas incuráveis, assim como eu, é perfeito - e não é nada meloso. Um filme corajoso, sem medo de tocar em feridas abertas, sem ser piegas, de atributos técnicos admiráveis (bons ângulos e enquadramentos, fotografia inteligente, diálogos longos porém não-enfadonhos, maquiagem eficiente) e uma direção brilhante de Babenco. Bom saber que a gente não tá preso aos filmes televisivos que temos atualmente, basta a gente voltar um tiquinho no tempo (1985 nem tá tão longe assim, hein?!) e se inspirar no bom cinema brasileiro.

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