Quando vou fazer resenha de algum filme, costumo anotar as coisas que me chamam a atenção, inclusive frases marcantes. Pois assistindo a O pagador de promessas, eu poderia escrever um caderno inteiro com quase todas as frases brilhantes do longa, escritas por Dias Gomes, autor da história e dos diálogos. Não bastasse isso, um homem como Zé do Burro, tão humilde quanto fascinante, nos comove ainda mais na atuação soberba de Leonardo Villar. Uma aula. Esse filme devia ser obrigatório em qualquer escola de interpretação e de cinema.
Zé ganhou o apelido "do Burro" por causa de uma promessa inusitada: com seu animal à beira da morte, depois de atingido por um galho de árvore partido por um raio, ele resolve carregar uma cruz até a igreja de Santa Bárbara, onde irá depositá-la no altar. Depois de andar sete léguas, como ele não se cansa de repetir, acaba encontrando um empecilho no padre Olavo (Dionísio Azevedo), que não gosta de saber que a tal promessa foi feito num terreiro de candomblé. Além disso, o religioso acusa o pobre homem de tentar se igualar a Cristo com tamanho sacrifício e o proíbe de entrar na igreja. Começa, então, a jornada de Zé, que almejava o céu, diretamente para o inferno.
Com impressionante simplicidade, o filme consegue mostrar toda a intolerância religiosa imbuída nesse falso sincretismo que reina no Brasil. Iansã é Santa Bárbara, Santa Bárbara é Iansã, nessa mistura forçada de crenças tão distintas que se convencionou chamar de democrática. Mas se essa confusão, originária do tempo da escravidão, aconteceu justamente porque os negros não podiam cultuar seus deuses, mantê-la não significa prolongar esse preconceito? Todo esse raciocínio, no entanto, se dilui ao ouvirmos a dúvida sincera de Zé, que acha que não ofendeu ninguém prometendo a Iansã e cumprindo o acordo com Santa Bárbara. E realmente não ofendeu. Mas, apesar de se dar conta do exagero, a Igreja preferiu manter sua postura arrogante de não voltar atrás. Quem é que estava pecando mesmo?
Verdadeiro, transparente e dotado de bom caráter, Zé do Burro é um personagem extremamente cativante, do tipo que acha que a vida do burro é tão valiosa quanto a de um humano ("Não foi Deus que criou os burros?") e que homem de palavra não dá jeitinho ("Não havia almofadinha no trato. Em promessa, a gente tem que ser honesto"). E não dá para não ficar com pena dele quando a imprensa sensacionalista resolve inventar uma história em cima do drama do lavrador ou quando os comerciantes da região querem publicidade gratuita. Quando menos se vê, o circo está armado. Para completar sua desgraça, sua mulher Rosa (Glória Menezes) cai na lábia de um cafetão (papel de Geraldo Del Rey), causando-lhe ainda mais humilhação. Tudo que se segue é tão surreal que nem o protagonista nem o público entendem as proporções que o fato alcança. Mas, devidas as proporções, o que acontece na ficção é bastante verossímil.
Contando com uma grande história e um elenco afiado, Anselmo Duarte também é feliz em vários momentos do filme, como nos planos abertos em que enquadra a escadaria da igreja, ora ocupada por um devoto solitário, ora por uma multidão insensível, ora por uma mulher em choque. Ou nos closes em que Zé admira Santa Bárbara, com olhos cheios de fé, esperança e gratidão. Mas é no desfecho da história, pouco antes de as portas da igreja se abrirem, que ele nos brinda com numa imagem fortíssima, tão bela quanto triste, e que representa tudo aquilo que Zé não queria. Ele só queria agradecer a Santa Bárbara por ter salvado seu burro. Só isso.
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