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Mais tendencioso, impossível

Confesso que ainda estou chocada com O nascimento de uma nação. Embora há que se reconhecer seu pioneirismo, essencialmente técnico - e por este motivo, está nesta lista de clássicos -, o conteúdo chega a ser nojento de tão racista, tendencioso e manipulador. O pior é pensar que ele não apenas refletia o pensamento preconceituoso da época, mas deve ter ajudado a reforçar essa visão torta da história americana por algumas gerações. E sabe o que é mais impressionante? Não consegui abandonar o interminável longa de D. W. Griffith antes do final. E o negócio ia ficando cada vez pior. Era tanto assunto para o blog, que passei a anotar num caderninho. É bom escrever sobre o que te agrada, mas é melhor ainda sobre o que você detesta...

"Se conseguirmos transportar os horrores da guerra para suas mentes, este trabalho não terá sido em vão. A chegada dos africanos à América trouxe a primeira semente da discórdia". Pretensioso, né? Além de parcial desde a primeira cartela (o texto inserido nos filmes mudos): em  outras palavras, os negros são a causa de todos os males. Afinal, uma das principais questões da Guerra Civil americana envolvia justamente a escravidão, permitida no sul do país. É só a primeira farpa, já que descobrimos, a seguir, que os coitadinhos dos brancos foram os que mais sofreram. Através da família Cameron, acompanhamos o drama deles: além de mandarem seus filhos para morrer nas batalhas, ainda perderam tudo que tinham: "A última de suas estimadas posses será vendida por uma causa perdida". É o que lemos quando a irmã mais nova tem que se desfazer de seu vestido mais bonito e passa a se vestir com farrapos.

E aí, o que vemos são negros invadindo casas e destruindo cidades. Aliás, atores brancos pintados de negros, o que torna tudo ainda mais ridículo. Além de forçar os lábios para que eles parecessem maiores, eles ainda falavam errado. Todos os erros da linguagem apareciam na cartela correspondente, claro, só pra reforçar a mensagem de que eles eram mesmo inferiores. Daí pra frente, é um panfleto político: se Griffith fosse vivo hoje, ninguém lembraria do Duda Mendonça na hora de fazer uma campanha presidencial. É um tal de "Abraham Lincoln, o grande coração" pra lá, "a generosa caridade do Norte" pra cá. Eca.

Só dou minha mão à palmatória ao diretor pela coragem de tentar fazer cenas de batalha. Tudo bem que era meio improvável que um sujeito segurando a bandeira da União ficasse lá parado no meio do fogo cruzado, mas imagina trabalhar com aquele monte de figurantes, uma única câmera sem muitos recursos, em 1915... O resultado é bem precário, mas foi um começo.
No segundo DVD (!), comecei a suspeitar que a parte ruim tinha terminado e que agora o filme penderia para o romance chaaaato entre Elsie, a filha do parlamentar Stoneman, e o coronel Cameron. Se fosse assim, eu só teria que reclamar das péssimas atuações de alguns dos atores, mas a situação fica ainda mais grave. Neste momento da história, os negros conquistam os mesmos direitos dos brancos, e ganham lugar inclusive na Assembleia Legislativa. Mais uma alfinetada, mostrando os novos livres como gente sem modos, tirando os sapatos em plena sessão. Óbvio que os brancos não gostam nadinha... 



E é aí que surge a trama mais revoltante de todo o filme: o coronel tem a brilhante ideia de criar a Ku Klux Klan, que serviu para "salvar o Sul da anarquia dos negros". Oi? É, isso mesmo que você leu. A KKK não era uma seita de assassinos racistas e sanguinários, mas um grupo que pretendia manter a ordem. É por isso que o único negro que vemos morto por eles em todo o filme não é simplesmente executado: acusado da morte da irmã do coronel, ele passa por um "julgamento" e sua morte serve de aviso aos demais negros. Em primeiro lugar, ele não foi responsável pela morte da jovem. Depois, usar isso como atenuante para seus crimes é como se justificássemos o julgamento do tráfico, que manda para o micro-ondas quem desobedece suas leis. Deu pra entender o absurdo da situação?

Quando eu acho que já chegamos ao máximo da manipulação, vem a pior parte: a sequência final é de embrulhar o estômago, mostrando os cavaleiros da KKK literalmente como heróis. São eles que resgatam a mocinha, o amor do coronel, dos braços do vice-governador mulato, que queria uma esposa branca. E são eles que resgatam a família Cameron, presa em uma cabana, sob a ameaça de dezenas de negros armados e enfurecidos. Atenção para o detalhe: nenhum massacre, nenhum derramamento de sangue, nenhum negro assassinado. Segundo Griffith, os negros foram somente desarmados pelos nossos nobres cavaleiros, defensores da paz. Simples assim. Eu não conseguia acreditar no que eu estava vendo.

Apesar de discordar do filme do começo ao fim, acho que assistir ao longa é uma experiência válida. O nascimento de uma nação é daqueles exemplos de como não fazer cinema, ou qualquer outra arte. Senso crítico é fundamental e não faz mal a ninguém.

2 comentários:

Pensador Louco disse...

Tive que assistir "O nascimento de uma nação" quando estava na faculdade, onde soube que D. W. Griffith recebeu críticas muito duras e (obviamente) merecidas pelo filme que fez.

Naquele tempo, o cinema deixava de ser visto como mero entretenimento barato (como as casas de cinematógrafos, onde se exibiam curtas de gosto duvidoso ou meramente técnicos, como o famoso "chegada do trem à estação") e se tornava uma forma de arte maior. Pena que o filme escolhido foi essa aberração sulista americana.

O próprio D. W. Griffith tentou se desvencilhar das críticas e repúdio ao filme, dizendo que deveriam julgá-lo como uma obra, e não uma propaganda conservadora sulista (como as imagens da KKK mostrando seus membros como heróis). Ele dizia que apenas havia filmado uma história, e não um ponto de vista.

Tanto foi isso que, se não me engano, seu próximo filme chamou-se "Intolerance", esse sim uma crítica a quem o havia marcado como estandarte pró-racismo.

Parabéns pelo texto e postagem. Muito bom.

Anônimo disse...

Contexto, época, mensagem, etc. Considerem tudo isso antes de meter o pau no filme com a sua mentalidade politicamente correta construída por sei lá quantos anos de lavagem cerebral nas escolinhas de marxismo brasileiras. O filme fala sobre um período em que a ignorância predominava e que a diferença na pigmentação da pele era motivo de violência (e não me venha com o papo de todo branco é mal e todo negro é bom, isso não existe!) fosse lá qual a sua "cor"!!! O filme, óbviamente pago com dinheiro dos barões da época, retratam o que eles queriam ver e vender, não a realidade! se for pra ficar pregando o ódio racial baseado em imbecilidades, mais fácil começar a atirar em todas as pessoas que tem um pigmentação diferente da sua, ou um olho "rasgado", ou albinismo, ou cabelo ruívo, ou uma opinião diferente... Wake up and smell the roses!!!

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